sábado, 9 de julho de 2011

A Mágoa


A Mágoa e Suas Implicações
Por Odair José Comin
A complexidade que permeia as interações e relações humanas, abre brecha nas quais nascem diferentes desentendimentos. Isso, devido as precárias analises que são feitas dos discursos explícitos da comunicação direta. Quando ouvimos um relato, o que nos é repassado, dificilmente passa dos atos e conseqüências, as causas são desconhecidas, mesmo e principalmente por aquele que as verbaliza. Para quem ouve, não se pode fazer interpretações sem uma investigação mais aprofundada. As dinâmicas entre causa, ato e conseqüência, são bastante complexas e por isso a investigação é imprescindível antes de qualquer resposta ou atitude.
Quando temos uma queixa. Por exemplo: “fui despedido e estou mal”, esta é a queixa trazida e aparentemente o que lhe incomoda. Diante desta afirmação poderia se perguntar: Por que fostes despedido?  “Porque briguei com meu chefe”, ele responderia. Esta poderia ser então a causa, ou mesmo outras perguntas poderiam ser feitas para investigar mais a fundo a briga com o chefe e o que ocasionou, podendo surgir outras causas. Outra pergunta que poderia ser feita é: o que aconteceu ou acontecerá agora? “Não gosto de ficar sem trabalhar, fico angustiado e deprimido”. Esta seria a conseqüência. Outra pergunta ainda poderia ser feita: diante disso, o que mais lhe incomoda: ter brigado com o chefe, ter perdido o emprego ou ficar sem trabalhar e deprimido?” É importante que não se julgue, mesmo que a resposta pareça óbvia, é preciso que a resposta venha do próprio “queixante”, para que o diagnóstico seja mais preciso.
Às vezes para uma conseqüência, teremos sempre a mesma causa. Por exemplo, a lei da gravidade como causa da caída de objetos que são lançados para o alto, este sendo o ato em si. O ato modifica, pode-se tanto jogar uma bola ou uma pedra, ambas conseqüentemente cairão. Outras vezes, para uma conseqüência podemos ter diversas causas, ou diferentes conseqüências para a mesma causa. Uma traição pode resultar em diferentes desfechos: fim o relacionamento, um entendimento, a compreensão do traído, uma briga, sentimento de ódio, raiva, ressentimento, mágoa e outros. Causa, ato e conseqüência, também podem tornarem-se um ciclo, e um ir gerando a outra, como evaporação, nuvem e chuva, uma vai provocando a outra até que o padrão seja quebrado.
A Teia da Mágoa
A mágoa se apresenta como um desgosto, um descontentamento, que pode ser por alguém ou pela própria vida. Uma amargura que no sentido da palavra, nos deixa um gosto amargo pelas relações passadas, uma grande paixão que se tornou reduto de ódio e por conseqüência, o corrosivo sentimento de mágoa. A mágoa nos deixa demasiados pesados para nos movimentar e demasiados lentos para pensarmos com lucidez, prudência e coerência. A mágoa nos enleia em suas teias como uma traiçoeira aranha, nos abocanhando repentina e plácida. Lentamente ela nos devora, jogando seu néctar que nos corrói por dentro e nos trazendo dor e sofrimento.
Buscamos respostas e soluções para a mágoa e suas diferentes implicações, assim como a absolvição, para que a mágoa seja entendida. Claro é, que esta é uma discussão complexa, ampla e difícil. Um tema que evidentemente não será esgotado, pois a mágoa é como um rio que escore como o sangue em nossas veias, impregnada como um sentimento corrente no ser humano. A mágoa é uma forma de pensar e sentir, que causa muita dor e sofrimento. Muito mais em quem a sente, do que em seu alvo. Estar magoado é como tomar uma dose de veneno, esperando que o outro morra. Um desgosto que normalmente vem e toma o lugar de um sentimento virtuoso: o amor. Alguém que pelo lugar em que ocupa deveria ser amado, de repente, por atos talvez impensados, ou que seja premeditados, escolhidos, ou imprevisíveis, é julgado às vezes sem muita lucidez tornando-se então, reduto de mágoas. Neste caso, o mais importante não foi a intenção do outro, mas a própria reação. O outro acaba por se tornar um ser humano deplorável, imprudente e desumano. Uma amargura que contagia sentimentos e acaba deixando o gosto amargo no dia a dia, az vezes chegando a perder a graça ou o próprio sentido da vida. Perdem-se uns dos outros e não querem mais se encontrar, preferindo a solidão em detrimento do perdão e da companhia. Chegando em muitos casos a arrastar essa mágoa por toda a vida.
“Meu pai era alcoólatra e quando eu era criança me batia, depois que cresci saí de casa e nunca mais voltei, não perdôo meu pai, se quer o reconheço como tal”. Um depoimento como este pode guardar muita mágoa. A dor talvez não consiste no fato de não ter tido um pai “normal”, que dê carinho, afeto e amor a seu filho. Mas sim, na incapacidade de perdoar e a intolerância cunhada e julgada num comportamento paternal não muito sadio. De forma alguma neste texto cabe a generalização. Mas é importante saber que as pessoas dentro das suas possibilidades, procuram fazem o melhor que podem. Se não fazem ou fizeram diferente, é porque talvez não sabiam. Quem sabe este tenha sido o modelo de educação que tiveram, foi a forma que aprenderam a viver e educar, por isso, repassam achando ser a melhor ou mesmo a única forma de viver a vida e ensinar alguém a vivê-la. Não estamos defendendo pais agressivos ou alcoólatras, mas sim, tentar entender o porque de agirem de tal maneira, ou seja, as causas.
Talvez alguém chegue falando, “meu pai é violento com minha mãe, espancou a mim e minha irmã até a adolescência. Hoje minha irmã está casada com um homem que a violenta, é agressivo com ela. Eu estou namorando um cara que usa drogas e é violento também”. Bem ou mal, bom ou ruim, nossos primeiros e principais modelos de homem e mulher são nossos pais. Se tivermos poucos contatos sociais, o que aprendermos em casa, isso se torna “normal”, e é desta forma que viveremos, acharemos que realmente é assim que funciona. Neste caso, os homens realmente são violentos, todos são assim e sou atraída por eles, poderia pensar. Todavia, um belo dia descobre-se que os homens podem ser diferentes. Como ficam os sentimentos pelos pais destes indivíduos? Esta é uma das formas da mágoa nascer trazendo conseqüentemente suas implicações.
Complexidade Humana
Ao falarmos de ser humano, é impossível usar scripts, impossível ter “pacotes” pré-preparados. O mais certo é o incerto. A “armadura” que serve para um, dificilmente servirá para outro. Por isso, descartemos interpretações que tentam enquadrar o homem em moldes padronizados, e por isso, pouco lúcidas e aceitáveis. É necessário investigar as causas que regem os problemas e especialmente os problemas daquele indivíduo em particular. Fazendo por ele mesmo chegar à conclusão necessária, sem colocar palavras em sua boca, pensamento em sua mente ou sentimentos em seu corpo. Quando se conhecem as causas primeiras ou princípios pelos quais este indivíduo vive, fica mais claro seu entendimento, possibilitando decisões mais acertadas para aquele problema em si.
A questão que mais intriga e causa controvérsias, é depois de conhecidas as causas, como isso pode ou deve ser trabalhado para se chegar a uma resolução mais rápida, concreta e definitiva. Se pegarmos vários pensadores, veremos que cada um trilhará um caminho próprio. Depende de como cada um entende o ser humano, qual é seu método. Alguns irão ao passado onde tudo começou e de posse dessas informações trabalharão, outros buscarão explicações nas inter-relações do indivíduo. Aqueles que acreditam no inconsciente, talvez joguem a responsabilidade para ele. Outras ainda trabalharão no presente com orientação para o futuro, buscando a solução ou mudança. Diferentes são as formas, todas têm suas qualidades, imperfeições e limitações. Umas serão mais rápidas, outras mais lentas. Cada uma possui seus méritos. Talvez a mais assertiva será aquela que conseguir no menor espaço de tempo utilizar a realidade individual do paciente, causando o mínimo de dor e indiferença e o máximo de prazer na solução do problema.  
Absolvição da Mágoa
Para que se possa eliminar a mágoa, é necessário absolver. E para absolver é necessário que se conheçam as causas pelas quais o outro fez o que fez. Na medida em que você entende e coloca-se no lugar do “acusado”, poderá tomar sua decisão, declarando-o inocente se inocente for. Perceber que talvez o outro seja inocente por ter agido com ignorância, ou simplesmente por ter feito o melhor que poderia, pois não tinha escolhas. Entretanto, você pode descobrir que o outro agiu de má fé. Tudo foi premeditado, ele tinha escolhas, ele poderia ter feito diferente, mas não o fez, neste caso, é mais complicada a absolvição. Porém, não aceitar o erro do outro, não significa que não possa perdoa-lo, você pode sim absolve-lo mesmo sabendo que o outro agiu de má fé. É possível buscar um entendimento para que isso não se repita mais. Se for alguém que não faz mais parte do seu convívio ou mesmo que já tenha falecido, podes perdoar sem uma comunicação direta, mas sim apenas consigo mesmo, neste caso, o seu perdão é o elixir da sua cura.
Somente pode ser absolvido quem de alguma forma cometeu um erro ou é culpado. Mas isso aos olhos de quem? Neste caso, do acusador em especial. O que é natural ou certo para alguns, pode não ser para outros. Assim, se você acha que alguém errou e depois descobre as causas que levaram a fazer tal ato e que talvez no lugar dele faria o mesmo, como fica? Na verdade, você não precisaria mais absolvê-lo, haja visto, ele não ter cometido nenhum “crime”. Ai pode nascer uma implicação da absolvição, que é a caça virar-se contra o caçador, e agora quem deve ser absolvido é o acusador, por ter sido precipitado em seus julgamentos, por não ter se utilizado da prudência.
Temos então o outro lado da absolvição, para que o absolvidor não sinta culpa em inocentar o suposto acusado quando este não tem culpa, é necessário fazer uma analise de si mesmo e perceber o que o levou a fazer tal ato, para que o círculo não continue e você sinta-se culpado por agir precipitadamente, continuando a sofrer. Da mesma forma que o outro, você também fez o melhor que pode dentro do que sabia e de suas possibilidades. Se não percebeu alguns detalhes e informações importantes durante o processo de acusação, talvez tenha sido porque nunca antes alguém lhe falou, que isso era necessário ser feito. Nunca antes você aprendeu que diferentes detalhes devem ser levados em consideração, antes de tomar decisões.
É importante ir além dos atos e conseqüências. É necessário perceber as causas. Em que momentos tais atitudes foram tomadas e porque foram tomadas. Que ambiente serviu de cenário. Que outras pessoas influenciaram em tais decisões. Que tipo de educação esta pessoa teve. Quais foram as possíveis motivações e crenças que levaram a tais atos. Quais eram as possibilidades de escolhas naquele momento e se tinha mais que uma. Que ferramentas possuía. Quais eram as limitações desta pessoa. Deve-se diminuir ao máximo o risco de erro, e de arrependimento futuro, que neste caso é protelar a mágoa, para que depois venha com ainda mais força.
Se faz necessário um raciocínio encima de evidências, para que não se corra o risco de perpetuar o erro do outro, com seu próprio aval e absolvição. Porém, isso também abre brechas para discussão. Por exemplo, um pai com seus setenta anos de idade. Durante toda a sua vida ele acreditou que o lugar da mulher era na cozinha, e apenas o homem deveria sair para trabalhar. Educou a filha segundo este princípio, ser dona de casa. Entretanto, esta nunca concordou com tal idéia, quando discordava era reprimida e foi tolhida em sua liberdade, tendo que agir dentro deste princípio. Chega um momento em que a filha sai de casa achando que deveria ter feito isso há muito tempo. Acabou por criar uma seria aversão ao seu pai e uma possível mágoa.
Ao fazer uma terapia, ler um livro ou de qualquer outra forma avaliou o seu passado para entender as ações do pai. Talvez perceba que ele tinha suas razões para agir de tal forma. Poderá inocentá-lo, mas isso não fará com que ele mude de idéia e nem por isso precisa obrigá-lo a mudar. São setenta anos pensando desta forma, e nesta idade, grandes mudanças podem trazer conseqüências como a perda do sentido da vida, ou mesmo a sensação de ter vivido de forma errada. Por isso, tudo é muito relativo e deve-se usar do bom senso. Deve ser muito bem avaliado, levando-se em consideração os diversos fatores que permeiam a relação. Os fatores que sustentarão a mágoa. Os fatores que regem o suposto causador da mágoa, e em que ambiente e cultura tudo isso acontece.
O maior objetivo é que sigamos um caminho que nos liberte deste sentimento que nos faz mal. A absolvição do outro será a nossa liberdade. A partir daí temos a possibilidade de recuperar o prazer em conviver com as diferentes pessoas. Nos sentindo mais leves em nossos pensamentos e sentimentos e no julgamento do outro que começa a ter novos critérios de interpretações, de tal forma que não nos enleie mais na teia da mágoa e nos cause sofrimento. A vida clama para se bem saboreada. 
Prevenção da Mágoa
Poderíamos dizer que a mágoa é uma forma de suicídio. Viver amargurado, nostálgico pelo o que foi e não é mais. Pelo o que foi e deixou feridas profundas. Um suicídio postergado que vai matando aos poucos, nos envolve de tal forma que não conseguimos mais raciocinar de forma clara a respeito que quem nos magoou, além de gerar medo ou receio de ter novas experiências e relação. Impede um bem viver. Impede o sorriso abundante, que poderia trazer o gosto bom de viver. Impede a confiança no outro.
A mágoa é um sentimento aparentemente insignificante, porém deixa marcas gigantescas em nossa dinâmica interna. Não é uma doença, é apenas um sentimento gerado por formas específicas de pensar. Raciocinar de tal forma que o leve a crer, que aquilo que o outro fez está errado, que não deveria ter feito, que deveria ser mais sensível, pensar mais, que deveria saber o que estava fazendo, que deveria... Todavia, não foi o que aconteceu. O outro tomou atitudes que lhe mostraram uma realidade que desconhecia, inesperada. E o que fazer quando a realidade nua e crua, se apresenta em nossa porta e bate até que abramos? Não bata a porta em sua cara, receba-a como um amigo para uma conversa. Devemos extrair o máximo de proveito, o máximo de aprendizagens e pensares lúcidos, devemos nos tornar amigos, assim será mais fácil para lidar com a realidade.
Aceitar esse real não significa deixar-se ser dominado. Que o seu sentimento de raiva ou ódio tornem-se num rançoso sentimento de mágoa. Não. O outro apenas lhe mostrou uma realidade. Por sua vez agora, deve analisar o que está sendo mostrado e tirar suas próprias conclusões. Depois se faz necessário que mostres a sua escolha, frente ao que foi apresentado. Não se trata aqui de vingança, mas sim de limites. O outro vai até onde permitimos que vá. O outro entra em nossa vida pelas portas que abrimos, o outro faz conosco aquilo que permitimos que faça. Podes escolher trancar algumas portas, porque não! Podes distanciar-se, podes continuar com reservas. Podes voltar a confiar. Cada um pode fazer a própria escolha consciente, analisando as circunstâncias sem precisar alimentar em si, a mágoa.
Na medida em que nos relacionamos com as pessoas, vamos apreendendo e identificando o terreno de cada um. Percebendo onde podemos pisar ou não. Não é interessante magoar nem ser magoado. No momento em que existe um conhecimento mútuo, é importante que se crie um respeito mútuo, pautado no conhecimento que cada um tem do outro. Se houverem deslizes, deve-se fazer os questionamentos necessários à elucidação do fato. Deve-se se perguntar o que pode ser relevado, absolvido ou mesmo condenado.
Já que a mágoa é um sentimento gerado por uma forma específica de pensar em relação ao outro, para que ela não se forme, precisamos pensar diferente do modelo padrão causador da mágoa. Pensarmos de tal forma que possamos ter lucidez e entendimento com relação aos fatos. Assim, evitamos esse corrosivo sentimento, nos sentiremos mais leves, acabaremos por compreender mais o outro e a nós mesmos. 

Referências Bibliográficas 

LÓPEZ, E. M. Os quatro gigantes da alma. Rio de Janeiro, José
Olympio Editora, 1998.ARISTÓTELES, Retórica das paixões. São Paulo, Martins Fontes, 2000.
VAUVENARGUES, Das leis do espírito – Florilégio filosófico. São Paulo, Martins Fontes, 1998.
 Artigo publicado na Revista Psicologia Brasil
Nº 16 - Dezembro de 2004.
 *Odair José Comin, Psicólogo, Hipnoterapeuta e Escritor 

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